Em 2021, Zélia Duncan celebra 40 anos na aventura de viver a música. Maratonista nas horas vagas, a cantora e compositora Zélia Duncan não perde o fôlego diante dos obstáculos do isolamento social. A artista festeja 40 anos de carreira e ainda lança um novo álbum, Pelespírito (2021), fruto de um encontro musical com o poeta e produtor pernambucano Juliano Holanda, com quem compôs todas as faixas durante a pandemia. “Gravei eu mesma 15 vozes de 15 músicas novas nesse período. Então, para mim está sendo produtivo, mas ao mesmo tempo superangustiante”, desabafa.
Inquieta e curiosa, Zélia não ficou presa à imagem de “cantora pop” ou de quaisquer outros gêneros musicais. Pelo contrário. Ela mergulha com a mesma intimidade na poesia de Itamar Assumpção, de Luiz Tatit, de grandes compositores do samba e até mesmo nas ondas do rock psicodélico dos Mutantes.
Ativa nas redes sociais, seja em bate-papos que ela realiza no próprio perfil, seja nas lives na qual apresenta repertórios afetivos, como em sua participação no #SescAoVivo no canal do YouTube do Sesc São Paulo, Zélia concluiu na pandemia um curso de teatro na Casa das Artes das Laranjeiras. Ninguém consegue parar Zélia, que demonstra aos 56 anos: o segredo da longevidade é ser uma eterna aprendiz.
Aos mestres
Itamar Assumpção é um dos meus maiores ídolos. Eu tive a honra de me aproximar e ficar amiga dele. Ao todo eu já gravei 25 músicas do Itamar. Até um álbum emblemático meu, Eu Me Transformo em Outras, onde canto choros, sambas, homenagem a outras cantoras, esse álbum eu abro com uma música do Itamar. Então, ele está sempre na minha vida.
Aí uma hora eu parei e me dediquei a fazer um álbum inteiro para ele (Itamar Assumpção – Tudo Esclarecido, 2012), isso foi muito natural para mim. Havia músicas inéditas, porque tenho acesso a Anelis, a Alice Ruiz, que me deram músicas inéditas. Eu queria trazer o Itamar para uma coisa mais popular, porque o Itamar tem, injustamente, essa fama de “maldito”, e a música dele não merece isso. Imagina o que Itamar não enfrentou neste país racista, neste país onde existe toda uma elite cultural, e ele era um artista, além de popular, extremamente genial.
Depois veio o Luiz Tatit, veio o Totatiando (2014), e os dois foram lançados no Sesc São Paulo. O Totatiando foi bem teatral, quando eu quis voltar a fazer coisas teatrais, até porque no comecinho eu fiz escola de teatro. E o Milton (Nascimento) foi bem diferente, participei de um projeto idealizado pelo André Midani, chamado Inusitado, para fazer coisas que você nunca tinha feito – mas eu vivo fazendo coisas que eu nunca fiz.
Resolvi homenagear um autor, só que sem instrumento de harmonia; então, eu escolhi o Milton, que está muito na minha formação de garota, e convidei Jaques Morelenbaum. Então, Invento + (2017) era um show de cello e voz e mais nada, cantando Milton. Essa formação era tão inusitada e perigosa porque cantar melodias que têm a sua sofisticação só com um instrumento que é melódico era um grande desafio para mim. Por isso eu quis fazer.
Todas as Zélias
É a mesma Zélia dentro de ambientes diferentes e isso é que é divertido. Claro que cada um (compositor) me puxa para outros lugares e isso é o que me interessa. A primeira ruptura foi Eu Me Transformo em Outras (2004). Eu fiquei conhecida como cantora pop, mas sempre era convidada para projetos de samba, que eu amo. E sempre ia com muita naturalidade. Eu apareci como uma cantora pop, mas sou forrada de música brasileira. Do que a minha mãe ouvia em casa, do que o meu pai cantava. Eu perdi meu pai, e minha mãe está aí, canta, os dois tinham boa voz, então esse repertório afetivo era de MPB.
Na hora de partir para minhas influências, porque eu ouvia muito Itamar, muito Tatit, não poderia ter feito essas homenagens se elas não estivessem absorvidas no que ouço há muitos anos. Então, o fato de ouvir essas coisas há muitos anos me deu a naturalidade que eu precisava. Para mim é muito normal cantar Itamar e no dia seguinte cantar Milton. Vou com tudo, com o que meu coração escolhe eu vou.
Eu virei uma especialista em decepcionar o meu fã. E claro que falo isso brincando. As pessoas que gostam de mim me agradecem porque apresentei para elas o Itamar, porque elas nunca tinham ouvido Luiz Tatit. Eu me arrisco, eu mudo mesmo. O tesão para mim está ligado a me surpreender: eu preciso me sentir fazendo coisas que não me deixem burocrática. O que é mais perigoso: mudar ou não mudar? Pergunto eu a você em relação ao artista.
Uma mutante
Das coisas mais perigosas essa aí está quase no topo. Antes de mais nada, assim como todo o Brasil eu queria que fosse a Rita Lee, eu queria ver a Rita ali. Eu nem conhecia os meninos, e esbarrei com o Sérgio Dias num estúdio no Rio de Janeiro quando a gente foi fazer a participação num mesmo disco, não na mesma faixa. E, poxa, Sérgio Dias, né?
A gente começou a conversar e parecíamos amigos de infância. Dois ou três dias depois, eu abro meu e-mail: “O Zélia, aqui é o Sérgio Dias. Quer cantar com os Mutantes em Nova York, Los Angeles e São Francisco?”. Fiquei em pânico porque era muito ousado para mim no sentido que eu sabia que todo mundo queria que fosse a Rita, ele me disse que tinha chamado a Rita e ela estava fazendo outras coisas.
Eu, amiga da Rita, liguei para ela, contei e perguntei como era para ela. Ela me disse: “Você vai se divertir com ‘os mano’”. O que eu fui fazer? Fui tentar me divertir com ‘os mano’, eu não sou boba. Sempre me coloquei como uma cúmplice e testemunha, não era uma Mutante de verdade, mas uma cúmplice e tenho muito orgulho dessa passagem.
EU APARECI COMO UMA CANTORA POP, MAS SOU FORRADA DE MÚSICA BRASILEIRA
Zélia Duncan
Processo criativo
Na minha primeira fase, eu escrevia a letra antes (de criar a melodia). Eu sempre mandei a letra para Christiaan Oyens, maior parceiro dos grandes sucessos da primeira fase, e com outros parceiros era assim também. A partir de um certo momento, começaram a me mandar melodias. Aí, eu comecei a sentir o prazer de botar letra na melodia. Hoje acontece mais assim: eu boto a letra na melodia.
E os temas para mim são sempre os temas cotidianos, coisas que causam alguma coisa: indignação, alegria, tristeza, paixão, encantamento, desilusão. Temas humanos, brinco, sublimo situações, mas escrever tem um negócio maravilhoso, né? Escrever é sempre muito revelador. Até quando você escreve fingindo que não é você, você faz isso a partir de você, não tem como. De alguma maneira, você está falando de você. A não ser que tenha alguma encomenda, aí eu vou tentar ser você, mas, de novo, a partir de mim.
Criar na pandemia
Muito difícil. Passado mais de um ano, estamos com um pouco de experiência em relação a essa dor. Você tira o artista do conceito da vida dele, que é o encontro. Então, eu e vários colegas, a gente se fala, cada hora um cai, cada hora um se deprime e precisa de uma força. Eu não parei de criar coisas, mas tenho amigos que ficaram completamente bloqueados, grandes compositores que não conseguiram fazer nada.
Eu acabei de lançar meu álbum todo feito em isolamento. Gravei eu mesma 15 vozes de 15 músicas novas nesse período. Então, para mim está sendo produtivo, mas ao mesmo tempo superangustiante. Tem dia que acordo muito triste, aí vou para a esteira correr, aí tento me perdoar se naquele dia eu não estou tão criativa quanto eu gostaria, mas eu fiz muitas coisas e ainda estou fazendo muitas coisas, desde escrever, compor, fazer várias lives conversando com pessoas muito diferentes, fazendo meu #ZoioNoZoio, embora isso não seja uma obrigação para mim.
Às vezes eu fico um mês sem postar, eu só faço quando eu realmente quero falar alguma coisa, aprendendo a existir num momento em que, como artista, a sensação que a gente tem é que parou de existir.
Faceta teatral
Eu quero me provocar, eu quero aprender, eu sou curiosa. Como atriz, eu sou uma menina jovem, fiz poucas coisas. Sempre que me convocam nesse lugar eu vou, já fiz peça, um curta-metragem, me formei em teatro no meio da pandemia, quando mandei meu TCC. Fiz um curso quando era jovem, aos 20 e poucos, na própria CAL, na Casa das Artes das Laranjeiras. Abriram uma turma para gente mais velha, e um monte de ator voltou para a escola, gente conhecida, e a gente fez uma turma superbacana e entregamos o trabalho no meio da pandemia. Acho o teatro uma das coisas mais lindas do mundo. Acho lindo isso de tudo ser possível no teatro. Dentro de mim é um horizonte que não termina. Acho a profissão extremamente generosa e sempre que posso estar perto disso eu estou, como uma aprendiz.