Escritora Nélida Piñon fala sobre novo livro e como nutre a imaginação

Um dos mais importantes nomes da literatura fala sobre seu novo romance e como seu arcabouço de vivências e memórias tornou-se referência para suas obras literárias.

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A constatação que qualquer um faz ao ouvir a escritora Nélida Piñon falar sobre episódios de sua vida é a de que há literatura por trás da literatura. Para além dos escritos da primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL), e primeira brasileira a receber o Prêmio Príncipe de Astúrias pelo conjunto da obra, estão paisagens e personagens da biografia de Nélida.

Caberiam num romance seus enredos de infância, quando na aldeia da avó em Galícia, na Espanha, guiava vacas e ovelhas pela montanha; ou frequentava óperas e balés no Theatro Municipal do Rio de Janeiro acompanhada pela mãe, Carmen Piñon; ou mais recentemente, há quinze anos, quando adiou a pesquisa que lhe conduziria ao recém-lançado romance Um Dia Chegarei a Sagres (Record, 2020), pela impossibilidade, na época, de passar um ano em Portugal apartada de Gravetinho, seu cachorro de estimação.

Acumuladora de saberes diversos, como ela própria diz, Nélida conta nesta entrevista como esse arcabouço de vivências e memórias tornou-se referência para suas obras literárias. Em seu apartamento na Lagoa, no Rio de Janeiro, tendo ao colo a cachorrinha Pilara, a autora de Vozes do Deserto (2005), nomeada embaixadora ibero-americana da cultura, fala sobre o novo livro, a criação de personagens, finitude e, principalmente, o gosto pela palavra. “Eu não obedeço a um requinte erudito. Nem pensar. Quando eu eventualmente uso uma palavra, é porque ela está ali à minha disposição. Ela aparece e eu pego. Ela passou a cavalo e eu monto nela, não uso dicionário”, compartilha.

Como nutre sua imaginação?
A imaginação é uma coisa muito interessante. A gente pensa que vem de graça. No início, você herda aquilo que tem, da sua casinha, da sua família, da sua comidinha. Isso é matéria da sua imaginação. Mas aí você cresce e se você, ao crescer, vai ampliando a sua sensibilidade sociológica, musical, literária, a sensibilidade da sua mirada, de tudo que você olha na frente e atrás – porque você tem que ser camaleônica, 360 graus, entendeu –, você vai ampliar os estatutos da sua imaginação. E, tem mais, se você, a partir de uma certa idade, um jovem ou uma jovem escritora, não continua no exaustivo trabalho de alimentar a imaginação, ela fenece, ou fica muito exígua. Ela fica pequena. Eu, até hoje, na minha idade, na minha circunstância, eu não faço outra coisa senão alimentar minha imaginação com tudo. Sou de uma variedade de saberes que eu própria fico impressionada. Mas, por quê? Porque eu me devoto a esse exercício. A imaginação não pode ser abandonada. A imaginação não é mecânica, ela é orgânica. Ela precisa de amparo do seu olhar, de sua sensibilidade e da sua decisão de dar vida, dar mingau, dar cerveja, dar vinho a sua imaginação.

Em Um Dia Chegarei a Sagres, há uma imagem bonita dos três relógios, e a ideia do tempo perpassa todo o livro como algo poético, filosófico, e ao mesmo tempo dolorido pela questão da finitude. Poderia falar um pouco sobre esse aspecto?
O relógio pauta a vida do Mateus na sua narrativa, de certo modo, mesmo que ele não apareça ao longo da história, nem se explique em que momento ele terá adquirido aqueles relogiozinhos com o pouco dinheiro que ele tinha, não havia necessidade. A narrativa nem sempre cobre todos os buracos da história, não é possível, senão você escreveria oito volumes. Mas, ao mesmo tempo, eu faço uma pequena homenagem ao imperador Carlos V. A noção do tempo é muito bem encarnada nos relógios na parede. Ele vai ficar vendo a sua pobreza, nos seus possíveis anos finais, a marca do tempo. Como o tempo é implacável para todos nós. Então, penso que, de algum modo, quando se narra o livro, o tempo está embutido firmemente na própria narrativa. À medida que você vai avançando e retrocedendo – porque é um jogo de tempo, o que me deu muito trabalho, essa alternativa temporal –, a marca do tempo, que nem sempre eu ponho, por exemplo, ano, mês, dia, uma vez ou outra eu faço isso para que, mais ou menos, se saiba onde o Mateus está. Sabe-se que ele está vivo porque ele é o narrador, mas eu procuro não dar nitidez à cronologia, o mais importante é o tempo abstrato, o tempo que comanda o mundo e a nossa genealogia.

VOCÊ NÃO DEVE, NA MEDIDA DO POSSÍVEL, APAGAR AS PALAVRAS, PÔ-LAS DEBAIXO DO TAPETE COMO UMA POEIRA AO VARRER A CASA. ENTÃO, AS PALAVRAS EXISTEM PARA SEREM USADAS

Nesse sentido, no livro Mapas do Significado: a Arquitetura da Crença (Realizações Editora, de Jordan B. Peterson), que faz uma interpretação da Bíblia, em um determinado momento, o autor fala sobre a construção de dois conceitos: o conceito da história, que viria com a chegada da escrita, e o conceito de futuro, que, até então, o homem não tinha. Queria que você falasse um pouco disso, porque seu livro lida com esses estágios do passado e do futuro, da perspectiva.

O livro fundamenta-se em princípios históricos. Isto é, eu decidi que o livro alternaria entre o século 15 até o século 19, no qual Mateus está. Mas as simbologias, as utopias do Mateus, elas estão no século 15. Isso é muito importante para fazer as emendas do tempo e da história. Então, há uma história além da história individual dele, do enredo dele, há uma história que o empurra a ir ao encontro da sua utopia modesta, do seu sonho. O que eu deixo claro é que a utopia não é uma propriedade dos poderosos, dos intelectuais, dos ricos, utopia é um sonho modesto. Tanto que ele vai até a morte do avô Vicente, ele é um peregrino, vai caminhando, pegando restos de comida, ele atravessa Portugal quase – eu diria – a nado, mas atravessa Portugal em vários momentos a pé e as aventuras ocorrem nessas caminhadas. Então, essa é a vida dele, a história dele sobre o pulso da história do infante. E sobre o pulso da história gloriosa de Portugal. Agora, essa noção de futuro, eu não sei se abraço, porque não existe o futuro para o indivíduo. Poderá existir o futuro para a sociedade. O indivíduo fabrica a cada minuto aquilo que ele tem – que não sei se é futuro porque é presente para ele. O que ele tem é presente, ele não conta com o minuto seguinte, ele só conta com o minuto que ele está consumindo, o minuto que se escoa diante dele ou nele, no corpo dele, na vida dele. A noção do futuro é uma soberba. E, como dizia o Eclesiastes, a soberba prenuncia o fim.

Uma coisa que perpassa bastante sua obra é o conceito de memória. Nesse livro você diz que a memória é alvissareira para as pessoas felizes?
Mas aí é uma memória específica, biográfica, dele. Em geral, de verdade, a sociedade não se dá conta dos fundamentos preciosos da memória. Nós nada somos sem a memória. Você sabe seu nome por conta da memória. Você sabe de quem você é filho por conta da memória, do registro histórico, mas que a memória guarda. A memória diz quem você é, de onde você procede, qual é a sua história. Mas a memória viva, ela também apaga. Ela apaga e também trai. A memória é tudo. Então, nesse livro, é um ponto de vista do narrador, que era o infeliz. Ele acha que a memória pesa muito a ele. A memória dele não é feliz. Não faz crer a ele que ele é feliz. Então, ele quer dizer com isso que a memória dos outros é, supostamente, feliz. É feliz quem tem memória e vale a pena cultivá-la. Mas ele não se dá conta de que o livro é produto da memória dele. Tudo que ele vai contando, vai pensando, é quase um caleidoscópio dele, do repertório dele. Eu faço muita questão de esclarecer que a memória é a ficção do ser, a memória não é fidedigna; portanto, a memória ficcionaliza a história. A memória é pura ficção. E a conjunção perfeita para um narrador é memória e invenção. Não há invenção sem memória, e memória sem invenção.

Rio de Janeiro – A escritora Nélida Piñon recebe comenda da Ordem Padre José de Anchieta, na abertura do ano Mulheres na Literatura da Academia Carioca de Letras (Fernando Frazão/Agência Brasil).

E como é criar a emoção do personagem, essa percepção tão rica da personalidade?
É difícil, eu sofria. O livro, em vários momentos, roubou-me lágrimas. Por exemplo, quando inventei a figura da Amélia, eu chorei que você não tem ideia. Achei uma vida tão miserável, que odiei a humanidade naquele momento. Eu, que nunca odiei. Como somos tão cruéis. O que fizeram com Amélia? Então, essas percepções masculinas não são de agora. Desde sempre, pelos meus convívios íntimos e amigos, e tudo que vejo e leio, eu tenho a sensação, já de muito, de que abarco o desejo masculino, a potência, porque conheço as histórias que vou lendo: mata-se por sexo, mutila-se por sexo. O sexo estabelece a desordem no organismo humano. O sexo não é coerente, ele é cruel. Então, isso tudo me leva à reflexão, e não é de hoje, vem de anos e anos. Se você pensar, em contos meus há alguns de rara crueldade. Engraçado, tenho grandes contos cruéis no passado. Mas porque a história humana é cruel. E as pessoas me dizem: “Mas, Nélida, você é tão delicada”. E sou, mas a minha cabeça está em todos os lugares.

De que forma?
Minha cabeça esteve na Grécia 12 séculos antes. Eu, desde menina, naveguei pelos séculos, a partir de uma percepção que tive, que eu era de dupla cultura – espanhola/galega e brasileira. Isso me liberou a abrir todas as portas da cultura do mundo. Nada poderia ser longínquo ou ausente para mim. Então, fui acumulando sabedorias. Sou alguém que não fez outra coisa senão isso. Como diz uma amiga: eu tenho um capital de saberes, de sensibilidade e de solidariedade. Acho que para falar da crueldade, você tem que ter uma compaixão pelo humano, e eu choro pelo humano, por nós. Não sei se pela minha formação religiosa, que não me prendeu a obrigações e a dogmas. Eu sempre fui antidogmática, isso fez com que eu pudesse me comover com a nossa humanidade. Acho que é isso. Eu me filiei à humanidade à qual pertenço.

Tem um momento rápido no livro, o enterro do avô Vicente, em que você se refere a poucas pessoas ao lado da cova, uma cova rasa. O que fica para o leitor é a imagem da solidão da morte.

O ser humano é um solitário. Ele, então, engana-se. Ele tem a ilusão de que compartiu sua vida com todo mundo, mas não. Cada vez mais, se você observar, por exemplo, nessa pandemia, ficou patenteada a solidão dos seres humanos. As pessoas quase não se telefonam. Não é só que não podem se visitar, não há o interesse em se visitar, penso eu. Sinto que está como que oficializado o direito a uma solidão triste. Então, no caso do Vicente, o que eles tinham? Eles eram muito pobres. E o pobre é muito pobre. Então não tem as galas dos ricos. Eu, por exemplo, não posso dar o nome agora, mas me mandaram há dois anos ao enterro de um homem que foi poderosíssimo. Não tinha ninguém quase, porque ele já não era mais importante. Há uma frase, não sei quem disse: “Quando você deixa o poder, cresce grama na porta da sua casa”. É verdade. Ninguém mais telefona para você. Mas é muito importante nos meus personagens: que se antecipem a esse drama. Aprendam que isso é uma contingência humana. Pior do que isso é ser esquecido ao longo das décadas. Não haver registro histórico da sua vida. Acho isso impressionante. Como se você não tivesse vivido porque o mundo não percebeu a sua vida, a sua existência, não registrou a sua passagem pela Terra. Quer coisa mais dramática que isso: ter vivido em vão?

ESSA NOÇÃO DE FUTURO, EU NÃO SEI SE ABRAÇO, PORQUE NÃO EXISTE O FUTURO PARA O INDIVÍDUO. PODERÁ EXISTIR O FUTURO PARA A SOCIEDADE. O INDIVÍDUO FABRICA A CADA MINUTO AQUILO QUE ELE TEM

Pensa sobre o que vão achar de sua obra daqui a 50 anos?
Eu deveria pensar, mas não penso muito, e ao mesmo tempo é uma contradição minha. Desde menininha, eu guardava papéis. Eu tenho um apartamento só com arquivos literários e a professora [sua assistente] uma vez descobriu, num envelope, um marcador de livros bem velhinho, de 1948. Quando menina, eu frequentava a livraria Freitas Bastos no Rio de Janeiro, lá meu pai tinha aberto uma conta para que eu pudesse comprar, e Seu Oliveira, um dos gerentes, cearense, gostava muito de mim, eu devia ter uns 13 anos, ele me deu um marcador de livros, que botei em algum momento nesse envelope. Portanto, sou alguém que, desde menina, não jogo papel fora. Minha mãe dizia assim: “Ai, minha filha, por que guarda tanto papel?”. E eu: “Ah, mãezinha, eu adoro papel”. Nunca fui malcriada. Eu dizia, menina, em face da generosidade dos meus pais, da família que eu amava, que eu queria a independência, mas não a rebeldia inútil. Quero a independência sem perder as chaves da casa. Tenho tudo guardado. Esse romance tem mais de um metro de versões, então, devo ter de algum modo uma noção histórica porque guardo tudo isso, e isso tudo deve ter algum destino. Não é que conte a minha história, mas conta a história de um escritor brasileiro.

Sobre a recorrência de personagens masculinos como nesse novo romance, como desenvolveu a habilidade para encarnar a sensibilidade e visão masculina na criação desses personagens?
Acho que se você for pegar o escopo da minha obra é igual: as mulheres e os homens. Só que eu, ao contrário de muitas escritoras, eu tenho muitos personagens homens. Todos dizem, os críticos, que são “personagens redondos”. Então, por exemplo, tenho a Eulália, da República dos Sonhos, que é uma personagem mulher muito forte, mas ela encerra um ciclo, sobretudo nos contos, de mulheres distraídas. Embora não dissesse que eram distraídas, eu insinuava, porque a distração, a meu juízo, no mundo feminino daquelas mulheres, era uma maneira de a mulher se defender da tirania masculina. Ou seja, você me dava uma ordem, o marido, amante ou quem fosse, e eu fingia aceitar, mas muitas vezes eu não prestava atenção. Então, a distração me protegia do seu arbítrio. E você entendia que eu era tão “distraída”, e tão “tola” e tão “boba”, que você dizia: “Coitada, não posso fazer nada com ela”. A distraída reduzia o poder do homem. Enfim, acho que reparti bem adequadamente mulheres e homens personagens. Agora, é um desafio, eu reconheço, e foi um grande atrevimento meu ter explorado o homem, porque sempre quis incorporar o homem e a mulher à minha narrativa. Eu achava que esse era um dever narrativo meu. Como eu poderia fazer um romance sem o homem? Ou sem a mulher? Não poderia. Tinha, na medida do possível, que abarcar os meandros secretos da sociedade humana.

A riqueza de vocabulário na sua obra deixa evidente quanto você gosta da língua portuguesa, dos verbos. Você também tem um cuidado com a sonoridade das palavras. Poderia falar um pouco sobre esse seu recurso?
A lexicografia é uma ciência, mas não nasceu dos eruditos. Ela é composta de vocábulos engendrados pelo povo. Quando as pessoas inventaram uma palavra, foi porque ela era necessária, não foi, assim, uma fantasia humana. Cada palavra que existe corresponde a uma necessidade, portanto, você não deve, na medida do possível, apagar as palavras, pô-las debaixo do tapete como uma poeira ao varrer a casa. Então, as palavras existem para serem usadas. E, quanto mais elas podem ser usadas, mais rico é o que você diz. Eu não obedeço a um requinte erudito. Nem pensar. Quando eu eventualmente uso uma palavra, é porque ela está ali à minha disposição. Ela aparece e eu pego. Ela passou a cavalo e eu monto nela, não uso dicionário. Não sei o que é manusear um dicionário há mais de 40 anos. Não preciso ter a sofisticação falsa de buscar uma palavra para dar brilho a uma frase minha. Se não apareceu é porque não estava à mão e não interessava. Só uso o que passa por mim, o que corresponde ao que eu quero dizer. Por exemplo, estou trabalhando uma frase, e ponho um verbo, mas esse verbo não diz tudo o que é preciso dizer, isso eu constato. Tenho uma alta sensibilidade para o apreço e a serventia da palavra. Enquanto eu não entendo o que eu queria dizer e o quanto a palavra pode colaborar com a minha sentença, de modo algum eu me detenho. Eu vou substituindo, procuro a palavra que dê resultado, que enriqueça o texto e que expresse o que quero dizer, senão não dá. Agora, quanto à fonética, toda língua tem colisão fonética, choque fonético, que é um horror. Então, por exemplo, eu tenho que evitar muito “ão”. É uma questão de gosto musical.

Foto: Twitter/ABL/Reprodução.

Como assim?
Eu tenho que dar um esclarecimento: por que é que tenho essas obsessões musicais. Tive a felicidade de desde menina ser levada por minha mãe amada, Carmen Piñon, ao teatro dramático, aqui na cidade. Íamos frequentemente, ela queria que a filha fosse uma menina culta, meu pai também, de família imigrante, queria muito que a filha fosse culta. Daí os livros, daí a conta aberta na livraria, daí me levaram ao teatro dramático e depois eu comecei a frequentar semanalmente o Theatro Municipal [do Rio de Janeiro]. Foi meu lar. Foi realmente minha grande formação: o Theatro Municipal e os livros. Eu devo tudo a eles. O que eu fazia no Theatro Municipal: eu via ballet à exaustão, ópera à exaustão – aprendi o sentido do melodrama vendo ópera, melodrama é um ingrediente essencial para a narrativa –, vi todos os grandes pianistas. Tomei chá com Arthur Rubinstein (1887-1982), já viu coisa igual? Tudo isso me ensinou a musicalidade. Então, aprendi uma coisa fantástica: aquilo que não podia ser dito no palco é porque não era um drama necessário, não interessava. É como no livro: você tem que escrever o que te interessa contar. O que não te interessa, você põe de lado. Você tem que procurar o que rende na narrativa. Eu aprendi tudo isso. Não trabalho sem música, desde menina. Se você me perguntar o que ouvi enquanto eu escrevi Um Dia Chegarei a Sagres, vou te dizer que [Richard] Wagner e, sobretudo, todo dia, ouvia obsessivamente a Cavalgada das Valquírias. Estava cansada? Escutava a cavalgada e não tinha Cristo que me segurasse. Sabe o espinafre do Popeye? Para mim, era a Cavalgada. Eu sou um acúmulo de saberes, é uma coisa espantosa na minha vida, sem falar das viagens. A vida na aldeia, que foi benfazeja, extraordinária, eu levava as vacas e as ovelhas da minha avó para uma montanha que para mim era o Himalaia, mas depois, com mais idade, voltei na aldeia na Galícia, era uma montanhinha pequenininha, mas para uma menina de 10 a 12 anos era uma maravilha. Tudo isso eu botei a serviço da criação literária.

Você é uma cidadã do mundo, com um pé na Europa, mas também anualmente viajava aos Estados Unidos para dar aula. Esse acúmulo de saberes também é um acúmulo de lugares, de ambientes. No entanto, a sua literatura convive com o Brasil e a Península Ibérica. É isso que te delineia?
Acho tudo isso, inoculado por uma influência poderosa dos gregos. Acho que a minha visão de mundo, fundamentando-se no Brasil, principalmente, e na Península Ibérica, implica a migração dos povos. Mas, sobretudo, a formação, a paixão que tenho sempre pelos gregos, pela cultura grega, que foi fundamental na minha formação. E outra coisa importante, na minha formação, o que pauta tudo isso é a Bíblia, porque estudei em colégio alemão, de madres beneditinas que, embora religiosas, católicas, por serem alemãs ensejaram que eu estudasse o Antigo Testamento, o que é muito raro. Geralmente você estuda, como católico, o Novo Testamento. Tudo isso forjou uma percepção de mundo, e mistura tudo. Porque você tem que misturar tudo. Um personagem é uma mistura de tudo isso.

O LIVRO, EM VÁRIOS MOMENTOS, ROUBOU-ME LÁGRIMAS. POR EXEMPLO, QUANDO INVENTEI A FIGURA DA AMÉLIA, EU CHOREI QUE VOCÊ NÃO TEM IDEIA

Por que você demorou tanto entre os romances Vozes do Deserto (2005) e Um Dia Chegarei a Sagres (2020)?
Eu queria esse livro, esse romance e sabia que seria um romance total, difícil, grande. Comecei a trabalhar nele, na cabeça e pesquisando, em 2005. E por que eu não pude escrever? Porque eu tinha que ir a Portugal, ficar no mínimo um ano. Além disso, mais tarde, tive uma “pessoa” que atrapalhou totalmente a minha vida narrativa, sabe quem? Meu cachorrinho Gravetinho. Eu tinha paixão por ele, e ele estava mais gordo, muito temperamental e eu não conseguiria pô-lo na cabine. E eu não iria a Portugal sem ele, nunca. Teria que pô-lo no porão e eu não faria isso porque tinha medo que ele fosse morrer. Ele era muito difícil; então, fui esperando. Anos se passaram e eu não esqueci o livro. Já tinha ele roteirizado, e outras coisas foram acontecendo. Quando ele [Gravetinho] faleceu, em 2017, eu vi tudo claro: vou para Portugal. Organizei tudo, levei a outra cachorrinha, a Susi Piñon, que já tinha o passaporte europeu, tinha os documentos, e fomos para Portugal, ela foi comigo e eu não a deixaria. Ninguém pode imaginar que esse romance [Um Dia Chegarei a Sagres] não saiu [na época] por causa de uma pessoa chamada Gravetinho.

E por que escolheu a cidade de Sagres?
Antes de 2005, eu conheci Sagres. E, se minha história era sobre Portugal do século 15 ao século 19, Sagres era o epicentro da narrativa. Quando eu ia a Portugal, esses anos todos, rapidamente, porque eu não podia ficar um ano, eu ia escondida a Sagres. Os amigos íntimos queriam me levar a todos os lugares de carro, tinha motorista, amigos com essa condição, mas na hora de ir para Sagres, eu pagava para ir, porque eu não queria que ninguém soubesse desse meu segredo. E ninguém soube, nem quando eu estava lá eu mencionei esse livro. Grande Eduardo Lourenço dizia: “Portugal precisava saber melhor quem é Nélida Piñon, o que ela estará fazendo e que nós não sabemos”. Posso terminar dizendo que vivi uma paixão poderosa fazendo esse livro e que foi um milagre ter conseguido escrevê-lo, porque eu não estava enxergando já. Eu não pude escrevê-lo no computador, esse primeiro, o original. Foi todo manuscrito e, além do mais, eu tinha quebrado o braço em Madrid, então eu tinha muitas dores e fazia tudo isso com dores, mal enxergando. Com isso, cada capítulo eu tinha que escrever num só dia, porque eu tinha que ter tudo de cor, porque eu não podia reler, porque não enxergava. Foi um milagre. Algo extraordinário para mim, eu dizia o tempo todo que o Espírito Santo estava me ajudando como se ele pudesse me ditar as frases.

Escritora Nélida Piñon (Foto: Reprodução/Internet).

Com as novas perspectivas sobre o feminismo contemporâneo, voltou-se a se falar em uma literatura feminina. Você acredita em uma literatura feminina?
Claro que não acredito e nunca acreditei e sou uma defensora da literatura. O dia que me provarem que existe uma literatura masculina, aí terei que entender os postulados de uma literatura feminina. Mas isso não existe. Só existe uma literatura. É uma literatura que adota o ponto de vista de qualquer gênero, é um homem que escreve sobre Madame Bovary e uma mulher que escreve, como eu o fiz, assumindo a pessoa do Mateus em Um Dia Chegarei a Sagres. Acho que o escritor ou escritora que não é capaz de se apossar do corpo alheio, qual seja ele, de que gênero seja, ele ou ela dá prova de incompetência narrativa. Ou seja, para ele ou ela, só tem como suporte narrativo o próprio corpo e isso é muito pouco. Você não pode ter só um corpo que é o seu. O seu é insuficiente. Você tem que contar com o corpo do vizinho ou da vizinha, da amante ou do amante, e com isso você vai expandindo seus saberes sobre os corpos. Veja só, não há só o corpo da mulher ou o corpo do homem, cada corpo é um corpo. Portanto, quando você escreve, assume uma pessoa na primeira ou terceira pessoa, você tem que levar em conta não só um corpo específico, anatomicamente falando, como também um corpo psicológico, um corpo patológico, um corpo que pensa e que sente de maneira diferente do vizinho.

A MEMÓRIA É A FICÇÃO DO SER, A MEMÓRIA NÃO É FIDEDIGNA; PORTANTO, A MEMÓRIA FICCIONALIZA A HISTÓRIA. A MEMÓRIA É PURA FICÇÃO

Qual sua opinião sobre certos movimentos que querem reescrever ou apagar obras escritas há 40, 50, 100 anos, a exemplo de Monteiro Lobato e outros autores criticados por suas visões de mundo no momento em que suas obras foram criadas?
Me lembro de que, pós-Segunda Guerra Mundial, mais adiante, condenaram grandes escritores. Vamos ficar com os franceses. Por exemplo, Louis-Ferdinand Céline era tido como um escritor com ideias profanas, mas a obra dele era muito importante; o T.S. Eliot um pouco, mas ele se salvou; Ezra Pound também, mas todo mundo foi entendendo que a obra era tão importante que havia que ter não uma piedade estética, mas havia que separar o indivíduo da obra. Com isso eu quero dizer, mas esses são casos extremados, os outros casos que estão apontando é uma retificação histórica absurda: Você não pode apagar o passado. Você tem que corrigir o presente. Há que entender qual o contexto histórico. Então, o que se produziu há 40 anos teria um sabor diferente se fosse produzido hoje. Hoje todos falam disso ou daquilo por pura arrogância, uma arrogância que não lhes veio da descoberta, mas da herança de todos pensando ao mesmo tempo. Então todos nós estamos sendo beneficiados por um saber novo, renovador, que está tentando melhorar o mundo. Mas todos os livros, e toda a arte, tudo aquilo que ficou atrás, tinham as propriedades do seu tempo. Tinham as injunções do seu tempo. Daqui a pouco, você vai para os museus, para as bibliotecas, queimar tudo, acabar com todos os traços da civilização. Ok. Vão ficar contentes? Muito bem. O que vão botar no lugar de Homero? No lugar de Shakespeare? No lugar de Cervantes?

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